"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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terça-feira, 21 de dezembro de 2010

Tema de destaque 21 - Novos Tempos

Desde criança criei minha própria imagem especulativa de como seria a vida no século XXI. Comida em capsulas, transportes que flutuavam no ar, roupas de coloração metálica, cidades suspensas e por aí vai. Claro que fruto desse retrato caricato tem a ver com os alguns desenhos animados que passavam na época. Enfim, passadas quase três décadas desse lugar na minha memória, finalmente é chegada a realidade do futuro.

Embora algumas pessoas realmente se alimentem de um coquetel de capsulas a cada refeição, outras retornaram ao menu vegetariano de grãos germinados. As vestimentas seguem a ditadura da moda, então não há como estipular um padrão. Variam entre brilhos e tecidos naturais e dos tons multicoloridos ao nude. Os carros são bem dotados de mecânica, design e apetrechos ultramodernos, mas ainda andam sobre o chão. Aparelhos celulares multiuso, eletro eletrônicos para tudo e um pouco mais. Edificações mínimas e consumo máximo: essa é a cara dos tempos modernos. O cúmulo do exagero da saúde, da beleza, do individualismo, do ter. Mas também tem a economia excessiva; de palavras, de afeto, de entrega, de humanismo. Tenho a leve impressão de que com o passar dos anos a balança ficou obsoleta...

O ser humano não é mais o mesmo. Parece ter feito uma viagem inversa, tendo como destino obrigatório o lugar mais longe do seu interior. Vive as descobertas da engenharia genética, onde se declara ser possível reproduzir outra pessoa oriunda de duas fêmeas ou de dois machos. Fazemos tecnologia de ponta que nada perde e tudo transforma. Contudo, ainda não foi possível desenvolver o chip da felicidade. Algo capaz de dar sentido à vida das pessoas que se encontram desacreditadas de tudo e de todos.

A tudo isso, chamou-se desenvolvimento e progresso. A definição do alcance ao ponto mais alto na cadeia evolutiva da vida humana, até então. Por outro lado, percebe-se a predominância das relações superficiais, cibernéticas, virtuais. O sentido mais desenvolvido é o tato das pontas dos dedos que devem estar sensíveis aos teclados. E de todas as características daquela caricatura infantil, talvez, o ser humano seja quem mais se aproximou do estereótipo pensado. O homem de lata robotizado. O ser frio e calculista. Aquele que não entende a matemática de dar sem receber. Individualidade, competitividade e insensibilidade predominam como características marcantes.

Partindo da premissa filosófica que declara o homem como um ser social, faz-se a inferência de que a natureza humana está em meio a uma crise de esquizofrenia coletiva. Parece ter ocorrido uma inversão de referencial. Volta à tona a ótica de que o homem é o centro do universo. É certo que alguns aspectos práticos e de forma evoluíram. Descobriu-se que a Terra é redonda, que o horizonte não é o fim da linha e que os planetas giram em torno do sol. Contudo, as questões que envolvem a vivência em sociedade parecem estar mais confusas do que nunca. E agora? Essa pode ser uma angústia real? Será este o verdadeiro destino da humanidade: tender a viver só, sem credos e sem manifestar a sua essência social?

Para o meu bem e o de todos, uma aparição surreal trouxe alguns lampejos de resposta. No auge da minha divagação trágica, dei de cara com uma cena inusitada. Ao chegar a um seminário que tratava de assuntos do meu trabalho, revi um personagem que há quase dois anos me despertava inquietação. Observei detalhadamente o índio que anteriormente encontrava nas reuniões das instâncias de participação social. Vestia um terno escuro, com um belo corte e carregava um laptop numa bolsa lateral. Naquele instante não era mais o representante do controle social, mas sim um assessor direto do novo Secretário. Sentou-se e, em silêncio, lia calmamente seus e-mails antes de compor a mesa de abertura do evento. Apenas interrompia o que fazia para atender ao celular. Fiquei tão compenetrada com essa visão que pensei “é finito mesmo!”

Logo em seguida, anunciaram seu nome para compor a mesa de abertura do evento. Após todas as formalidades, para minha surpresa, o Secretário que conduzia os trabalhos, solicitou que o indígena evocasse uma prece para que os pactos ali celebrados fossem abençoados. Então, sem muita cerimônia, e depois de várias demonstrações de total desenvoltura, pegou o microfone e iniciou sua fala. Intitulou-se evangélico e chamou o nome de Deus. Aquilo sim foi de arrepiar. Cada palavra proferida, cada apelo encaminhado ao ser superior, mesmo que em um português dito em palavras trocadas, saia do fundo da alma. Dava pra sentir no tom de voz e na expressão do rosto que juntos, retratavam os sentimentos de quem segue em uma longa espera e agradece o encontro. Presenciei uma sabedoria profunda acerca da vida em sociedade. A passagem mais marcante do discurso enfatizava o pedido a Deus para iluminar a mente de todos que iriam assumir os trabalhos. Que tivessem sabedoria e a devida inspiração para cumprir com suas responsabilidades.

Fiquei com vergonha do meu pré-julgamento e pedi desculpas em silêncio. Primeiro, pelo preconceito; segundo, pelo julgamento e finalmente, por taxar uma pessoa pelo seu estereótipo. Afinal, qual é a diferença concreta entre pessoas desnudas com a cara lavada? Ao me redimir comigo mesma, deixei-me levar pelo pensamento. Pude perceber que, da mesma forma que as ondas de modernidade arrastaram consigo um futuro deserto, também favoreceram a construção de um contexto rico, multicultural e baseado no requinte da essência humana. Pude compreender que esses povos tradicionais precisam se adaptar para garantir sua inserção no mundo, e nós, os seres humanos da sociedade formal, carecemos urgentemente de redescobrir o humano dentro de nós. Quem sabe o encontro no meio do caminho não favorece aos dois tipos?

O velho e o novo. O de dentro e o de fora. Racional e sentimento. Divino e mundano. Moderno e obsoleto. Sociedade multifacetada e comunidade. Essas dobradinhas não representam duas caras da mesma moeda. Representam a complexidade que envolve a espécie humana e demais ramificações da cadeia da vida. Pude ver claramente que a ligação indígena com o divino é algo que vem de dentro. As pinturas no rosto e vestimentas rudimentares são apenas uma forma externa de criar um simbolismo próprio para mostrar o de humor ou uma passagem. Sinalizam o estado de guerra, de tristeza, de alegria ou de paz.

E não se dando por satisfeita, a vida trouxe mais uma de suas surpresas. Outro indígena encantou com seus dizeres. De cara falou sobre as características ancestrais da sua etnia, marcada pela postura de guerrear e de usar da força bruta para suas conquistas. Em seguida, demonstrou o aprendizado sobre a evolução do pensamento daquele grupo que agora prefere o diálogo. Mostrou o entendimento sobre a concepção do Estado Brasileiro de Direito e a essência da República Federativa Brasileira. Sabia do que estava falando e mostrou-se mais patriota do que qualquer um naquele auditório. Fiquei emocionada e completamente convencida da capacidade que o ser humano tem de se superar e de surpreender a si mesmo.

Por fim, a última pessoa a se pronunciar, recitou um trecho da música de Geraldo Vandré: Só pra não dizer que eu não falei das flores... “Vem vamos embora que esperar não é saber; quem sabe faz a hora, não espera acontecer.” Senti aquele evento recheado de cânticos, de mensagens de esperança, de incitação ao diálogo e à construção compartilhada das políticas públicas como uma pausa no princípio da legalidade que rege a vida na Administração Pública. A ladainha que engessa e prende o agente público a fazer apenas o que está previsto na lei, pura e crua. Envolvimento emocional, nem pensar. Então, como ter tesão pelo que se faz? Para terminar o dia, dei uma pausa na minha própria racionalidade e pensei: “Deus, obrigada pela chance de presenciar mais um milagre da natureza!”

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