"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Tema de destaque 19 - Sessenta segundos

Estava findando mais um dia comum. Era um feriado e nada mais trivial do que visitar parentes e terminar o dia confraternizando com a família. Nenhum compromisso com hora marcada. Fim de tarde. Um resto de chuva molhando o chão. Ao fundo, uma trilha sonora de MPB, como de costume. Tudo na santa paz, a não ser pelo ônibus que vinha logo atrás, com todo gás. Bastou um ponto cego no retrovisor e o que parecia mais um dia igual a todos os outros quase se transformou em uma tragédia. Criança morre esmagada por um ônibus seria a notícia. A criança de 3 anos que estava no banco de trás acabou absorvendo todo o impacto da colisão e não resistiu. Tudo culpa da mãe, que estava distraída e cega. O tal ponto cego. Sessenta segundos. Foi o tempo necessário para o ônibus desviar sua rota e sumir de vista.

Quando tudo aparentemente se acalmou, seu coração disparou e ela ficou paralisada. De repente, sua vida inteira passou pela mente como um filme acelerado. Pensou em todos que amava. Em todas as pessoas que se revelaram importantes para sua formação como pessoa. Lembrou de fatos relevantes e de outros sem muita importância. Lembrou também que um dia tinha feito a promessa a si mesma de que estaria sempre com a malinha pronta, caso a morte chegasse de supetão. Estaria quite com as pessoas que já passaram e com aquelas recém chegadas à sua vida. Acreditava que dessa forma estaria sempre em paz.

Quanta inocência... Naquele instante, deu-se conta de que não é tão fácil assim ter paz de espírito. Muito menos estar quite com o mundo. Ao mesmo tempo, seus dois lados, a banda podre e a sã, não paravam de tagarelar em seu ouvido. Faziam questão de apontar seu passado. Os feitos bons e os ruins. Cada qual com o enfoque cabível aos respectivos pontos de vista: pessimista e otimista. Então, pra botar ordem no galinheiro, deu a vez da palavra a cada uma das vozes. Preparou-se para o bombardeio, desarmada e entregue.

O primeiro lado a se pronunciar foi sua sombra. Toda cheia de si fez questão de armar o julgamento final. Tinha juiz, promotor, ré, menos o advogado de defesa. Pela maneira como conduziu as coisas, já tinha a resposta da decisão final: culpada sem chance de recursos. As leis eram claras. Os dez mandamentos, os sete pecados capitais, e tantas outras que caracterizam a conduta do ser virtuoso. Então, buscando se redimir com seu lado mais cruel, não via outra saída a não ser confessar seus próprios pecados. Então, a mulher imaginou-se de joelhos e proferiu a seguinte prece:

“Senhor, eu pequei. Quebrei todas as regras. Não honrei meu pai nem minha mãe como deveria, como eles mereciam, por todo o esforço que tiveram na minha criação. Passei de todos os limites que algum dia me impuseram. Infelizmente não consegui adorar a Ti sobre todas as coisas; sou mundana. Perdi o número de vezes que evoquei Teu santo nome em vão. Nunca fui casta nos pensamentos nem nos desejos, menti, furtei, enganei, cobicei a vida do próximo e em quase todos os episódios que me lembro, não fiz com o outro aquilo que gostaria que fizesse comigo. Sei que muitos desses episódios aconteceram em idade tenra, mas eu sabia o que estava fazendo. Fui egoísta e sei que não adianta usar o instinto de sobrevivência como desculpa, porque não havia nenhuma arma apontada para o meu pescoço. Tomei as decisões em função dos meus impulsos mesmo e não por coação ou medo de perder a minha vida. Não matei, mas fiz pessoas sofrerem e às vezes, sofrer dói mais que morrer. Então, estou ferrada mesmo. Em alguns momentos de depressão deixei-me invadir pela falta de fé e vaguei pela vida sem sentido. Cometi o pecado da gula, o da vaidade e o da ira. Já senti inveja, orgulho e muita preguiça. Em alguns momentos também me deixei levar pela luxúria. Não tem desculpa para tudo isso, eu sei. Minha sombra está coberta de razão. Preciso pagar por todos os erros cometidos. Sei que não sou digna de perdão nem de piedade. Sou assim mesmo, um ser pequeno, com vontades menores ainda. Não amadureci tanto quanto deveria. Não cumpri com todos os compromissos que acordei. Falhei na minha formação como pessoa e percebo que também falho na criação do meu filho de apenas 3 anos. São grandes deslizes... Pode deixar, eu mesma puxo o gatilho e me aniquilo definitivamente da face da Terra e de todos os outros planetas e dimensões. Fiz tudo errado e mereço a pena. Olho por olho, dente por dente.”

Depois de toda a confissão feita, entra em cena seu lado iluminado. Apesar de todos os erros cometidos, as virtudes continuam lá, latentes, mesmo que não sejam acessadas adequadamente. Todo mundo nasce com algum talento. E a luz sempre aparece principalmente para quem tem a certeza que ela existe. Então, com toda a calma peculiar aos que detêm a sobriedade, sua voz interior entoou a seguinte oração:

“Senhor, sei que cometi muitos erros, mas em todas as situações, desejei do fundo do meu coração ter feito a coisa mais acertada. Foram muitas tentativas frustradas, mas nunca perdi a fé por completo. Sempre que cheguei ao fundo do poço lembrei-me da Tua existência e pedi forças pra continuar seguindo em frente. E não posso negar que sempre fui atendida. Lembro-me dos dias que acordei transbordando de alegria e com novos sonhos a perseguir. Em algumas situações, quebrei as regras para não ser hipócrita, não por completo. Não podia fingir ser algo diferente daquilo que queimava por dentro. Durante algum tempo, eu era uma contradição ambulante, mas busquei o significado das coisas. Sei que nesse caminho, às vezes me desviei, concordo plenamente. Mas, por outro lado, sempre tentei estar de coração aberto, entregue aos aprendizados da vida. Mesmo nos instantes de puro egoísmo, nos quais me entreguei aos meus desejos mais mesquinhos, no fundo, fiz a tentativa de reforma íntima. Alguns desses erros, eu não cometo mais... Já é algum progresso concorda? Tenho consciência que sou um ser em formação, que tem algo a aprender até o último suspiro de vida. Busco ser amorosa e ajudar as outras pessoas a não passarem pelas mesmas dificuldades pelas quais tive que passar, para não serem violadas, nem desconectadas de si mesmas. Tento a cada dia, reconhecer o amor que recebi dos meus pais, proporcionando a eles momentos felizes em família. Escolhi trabalhar em uma área que me faz focar o olhar sobre pessoas vulneráveis, frágeis, que precisam de humanismo para conseguirem reverter sua condição de desigualdade. Aonde quer que vá, levo o meu coração comigo e prego a gentileza e a esperança como uma bênçãos preciosas e indispensáveis para se viver neste mundo. E acima de tudo, reconheço que posso melhorar em pequenas gotas. Sei que errei, mas não desisti de tentar acertar. Por isso, peço perdão e não prometo nada. Apenas reafirmo a minha condição de aprendiz e me coloco humildemente a semear amor em meio a tantas adversidades da vida. Não quero com isso diminuir a minha responsabilidade sobre os meus atos. Espero apenas um pouco de indulgência e de credibilidade para essa almazinha que não quer ser feliz sozinha. Coloco-me em Tuas mãos e continuo a pedir forças e intuição para seguir o caminho da luz. Mais uma vez, muito obrigada pela paciência e até a próxima.”

Após ouvir atentamente ambas as partes, a mulher recolheu-se em sua pequenez e refletiu sobre o fato. Aquele quase incidente representava um aviso. Só depois dos instantes de pânico isso foi perceptível. Pontos críticos; são esses os empurrões que os dedos da vida gentilmente concedem aos pobres mortais para continuarem no caminho. Às vezes, são sentidos de forma mais intensa, em outras, leves como uma pluma.

Não há como se estabelecer relativismos entre as escalas de medição do universo astral e o terreno. Por isso, o que são 60 segundos? Podem representar um quase acontecimento, um fato que marque o resto da vida ou mesmo o rebobinar de 30 anos de história. Portanto, o foco não é o número em si, nem o que sua escala de mensuração abrange. É simplesmente o significado maior do que foi vivido. O abrir das cortinas deixando os feixes de luz entrarem e iluminarem a mente por completo. Não faz tanta diferença se para isso, alguns casos requerem quase todo tempo do mundo. O que importa é se esbaldar com o brilho eterno de todas as lembranças sãs. De tudo o que se foi e de tudo aquilo que ainda está por vir.