"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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segunda-feira, 3 de maio de 2010

Tema de destaque 4 - A Dor da Perda



Há algum tempo pensei em escrever sobre este tema, mas a correria do dia a dia é tanta, que falar sobre assuntos como esse acaba ficando em segundo ou até em último lugar. Já é difícil parar e pensar a respeito imagina fazer o registro de forma reflexiva e organizada. Porém, com os altos e baixos da vida, acabei despertando novamente o interesse sobre o assunto.
Quando nos referimos a perdas, automaticamente atribuímos à morte de um ente querido ou de um familiar, o tipo mais relevante ou doloroso. Isso deve ocorrer por causa da visão materialista acerca da vida, que está impregnada na maioria das pessoas. Dá a impressão que ao nascer, é implantado em cada um de nós um chip especial que programa o nosso pensamento, levando-nos a acreditar que a morte é o fim de tudo. O ponto final sem exclamações, às vezes complementado apenas por algumas interrogações. Os desdobramentos disso podem ser percebidos devido à predominância do foco na busca pelas conquistas tangíveis, contábeis, palpáveis. Para o mundo, somos aquilo que possuímos em termos de recursos materiais. Quando findamos a nossa capacidade de produzi-los, eis que chega o momento mais temido e indesejável, mesmo para um idoso de 91 anos que já não levanta mais da cama e mal consegue se manter lúcido e cosciente de si mesmo.
Nesse sentido, posso considerar que, tomando como base o grau de parentesco, ainda não tive grandes perdas. Por outro lado, já presenciei a dor de mães que perderam seus filhos em idades lamentáveis e de forma trágica; de esposas que ficaram viúvas e tiveram uma história de amor interrompida; de maridos que perderam esposa e filho de uma só vez, e com eles, também a esperança; além disso tudo, eu ainda sinto saudades de um grande amigo que cometeu suicídio. Também assisti a uma discussão que acredito não ter resposta: o que doi mais, perder um filho ou o companheiro de uma vida inteira? Não pretendo diminuir nem menosprezar o sofrimento de quem quer que seja, é impossível diferenciar em termos valorativos quanto vale uma vida. Cada um sabe o tamanho da sua dor e cada pessoa tem um papel em nossas vidas, não sendo possível um filho suprir a ausência de um pai, nem mesmo o contrário. Então, cada contexto traz consigo uma realidade diferente.
Mas e se fizéssemos outros tipos de leituras e buscássemos entender as perdas indiretas, aquelas que ficam subliminares: a perda dos sonhos; da fé na vida e nas pessoas; dos sentimentos; da inocência; ou de algo que nunca nos pertenceu, mas que pensamos ter possuído em algum momento da nossa existência? Há também as perdas necessárias, aquelas que nos fazem amadurecer, mas que doem da mesma forma, mesmo quando temos a plena certeza de que são para o nosso bem. Constantemente vivenciamos algumas dessas situações e muitas vezes, não nos damos o direito de viver o luto necessário para que as feridas cicatrizem e possamos nos reerguer após um processo de renovação da alma. Esse luto ao qual me refiro, é o momento que temos para processar os acontecimentos, para fazer com que o entendimento acerca dos acontecimentos possa fluir do coração para a mente, que não aconteça apenas de forma racional. E principalmente, para continuarmos a seguir em frente sem temer o futuro, acreditando que o dia de amanhã representa a chance de realizarmos novas conquistas.
Desde a infância, muitas pessoas são bombardeadas com algumas expressões de efeito que tolhem a naturalidade e as direcionam para o caminho de diminuírem a importância inerente ao sofrimento das perdas consideradas mais amenas: engole o choro; homem que é homem não chora; você já é bem grandinho pra fazer xixi na cama; apague a luz antes de dormir, não precisa ter medo porque não há nenhum monstro debaixo da cama; que bobagem, era apenas um namoradinho da adolescência. Dessa forma, que tipo de pessoa se tornará um indivíduo que desde sempre teve roubado de si o direito de entrar em contato com os seus próprios sentimentos? Se o exercício de cura interior não é estimulado nem praticado desde os anos mais tenros de nossas vidas, como iremos saber como proceder de forma criativa em um momento mais extremo? Como entender os possíveis desdobramentos na cabecinha de uma criança que teve a inocência roubada em decorrência de ter sofrido abusos; ou de outra que teve pais adolescentes, os quais se separaram dez anos depois, deixando como herança referências equivocadas para seus filhos; ou aquela que foi entregue para a adoção e não pode optar por permanecer ao lado de sua mãe biológica?
Mesmo que essa não seja a nossa vontade, cada vez mais, esses eventos fazem parte do nosso cotidiano e, pelo fato de não tratarmos as perdas e os ganhos da vida como uma relação de compensações, inerente a qualquer ser humano, não daremos a importância devida às perdas relacionadas a nós mesmos, a tudo aquilo que já fomos um dia ou até mesmo àquela pessoa que decidimos ser e não persistimos. Não é estranho? Lamentar a perda dos outros de maneira mais intensa do que a desconfiguração da nossa própria alma? A saudade de alguém que se foi ou que simplesmente decidiu não fazer mais parte de nossas vidas doi mesmo, lá no fundo. Contudo, não deveria ser mais forte ou até menos suportável a saudade do indivíduo em relação a ele próprio? Recorrentemente, ficamos tristes ou nos deixamos abater por interpretar uma negativa como uma perda ou por vivenciarmos de forma desmedida as tristezas decorrentes das despedidas. Será que isso não tem a ver com aquela primeira suposição de não aprendermos o exercício salutar de viver o luto? O que mais me impressiona nisso tudo é que independentemente dos tipos de perdas aos quais nos submetemos pelo fato de estarmos vivos, nunca estamos preparados para dizer adeus. Por que é tão difícil nos despedirmos das pessoas, das coisas, do tempo e compreender os eventos como acontecimentos que têm um ciclo de vida próprio. Se alguém tem que ir ou se algumas situações pressupõem uma renovação da nossa forma de pensar e agir, por que não optamos por valorizar os momentos de qualidade já vivenciados ao invés de nos agarrarmos desesperadamente à última centelha de um presente quase passado? Por que é tão difícil nos libertarmos dessas amarras psíquicas que nos prendem a situações confortáveis e também nos impedem de mergulhar sem reservas na entrega de corpo e alma?
Talvez cada um de nós tenha uma resposta diferente. Quem sabe esse comportamento deva estar relacionado ao fato de atribuirmos as perdas a sofrimento e consequentemente, a uma redução do estado de felicidade. Assim falou o poeta: "tristeza não tem fim, felicidade sim"...
Enquanto não saímos da zona nebulosa, sugiro que sigamos em frente, um dia de cada vez, pois as únicas certezas que posso citar para consolar a dor de uma perda são que a fila anda, o sol sempre nasce, o tempo cura todas as feridas e viver, para quem se entrega com fé e otimismo, é na maioria das vezes uma boa surpresa!