"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

O Beijo
Gustav Klimt (1907)
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sábado, 5 de junho de 2010

Tema de destaque 6 - A Morte Enfim



Depois de tanto tempo, de tantas dores e sofrimentos, ele se foi. Era uma morte anunciada pelas sucessivas idas e vindas de longos períodos de internação. O corpo já não se suportava, a carne já se desfazia aos poucos e as feições já deterioravam a face que um dia sorriu lindamente. A boca que antes sussurrava galanteios não conseguia mais pedir socorro. E aquele que é símbolo maior da representação da vida, para muitos também é a consumação do fim do corpo. O coração. Uma parada. O descanso. Enfim o adeus. A notícia chega quando a noite finda. O telefone toca e diz: bom dia morte! Ocupamos os últimos assentos no último vôo, para chegar à última hora. Vai em paz. Conta a todos pelo caminho os feitos dos teus 91 anos.
No enterro, as figuras de sempre. Pessoas queridas e outras nem tanto, misturadas àquelas que nem me lembrava mais da existência. Além delas, alguns fantasmas perambulavam pelo cemitério... Homenagens feitas. As últimas despedidas do mundo físico. O toque nas mãos, um beijo no rosto, um carinho a mais, o contato derradeiro. As falas alternavam a emoção à flor da pele, a voz trêmula e espaçada, com a entonação ritmada dos discursos de quem cumpria um ritual de praxe. Uma delas me tocou profundamente. O genro da filha mais velha, meu pai. Sempre tão contido em relação aos sentimentos fez alusão à figura paterna assumida pelo sogro há 32 anos. Um vazio que não se preenche completamente, apenas se consegue amenizar a sensação da ausência. Mais uma olhada, só pra não esquecer a fisionomia de quem dormiria em paz para sempre. Segurei a rosa vermelha com mais força e senti um aperto no coração. Um nó na garganta e uma lágrima salgada na boca.
Os homens da família iniciaram o comboio até o ponto final. Dois homens aguardavam ansiosamente o caixão pra jogar a última pá de terra. A consumação do fim do corpo e a eternização do espírito para os que acreditam. Por um instante saí da cena. Participei apenas como um observador curioso. Segurava uma coroa de flores enquanto os olhos registravam pequenos retratos. Duas viúvas de preto ao meu lado, eram as filhas mais novas. Uma pequena urna de metal comportava os ossos do último falecido da família. Agora um faria companhia ao outro até o próximo evento. Que demore pelo menos dois anos, o tempo necessário pra enterrar um novo corpo. Os dois homens tinham pressa. Já passava da hora marcada. Rapidamente amarraram a corda, encaixaram dois ferros nas laterais do caixão e começaram o movimento para baixo. Finalmente os sete palmos e sobre eles a terra revolvida. As flores por cima simbolizavam a fertilidade que um dia existiu e ao mesmo tempo demarcavam o local, indicavam o endereço. Setor lírios, quadra 28, lote 325. Estava feito. Juntamos alguns trocados e acertamos o trabalho. Aos poucos o aglomerado se desfazia e cada um tomava seguia seu rumo. Em instantes o lugar estava vazio.
Ele se foi e deixou uma grande herança, algo de grande preciosidade. Como todos nós, viveu de erros e acertos. Como não cabe a mim fazer julgamentos deixo vir à mente as lembranças e a saudade do tempo bom que com ele se foi. A mesa pronta, sem nenhum lugar em branco. Apenas o dele estava vago, pronto para ser ocupado. O barulho de todos disputando ao mesmo tempo a fala mais alta, neste agora, é música aos meus ouvidos. Quando ele chega imediatamente sobressai o silêncio emendado pela sua voz ao fundo. Parecia um rei, cheio de pompa, de gostos a serem saciados, de rituais simples que se repetiam há muitos anos. Ainda hoje fico encantada com a capacidade que ele tinha de manter todos ao seu redor. Filhos, noras, genros, netos, agregados, vizinhos, conhecidos e desconhecidos que lhe tinham afeto ou não.
Nunca vou esquecer a saudação carinhosa: minha flor, cada vez mais linda! Dizia isso a todas, era sua marca registrada. Essa é uma das lembranças que ficarão na memória, como alusão a um tempo feliz. Um destaque à vivência de relações intensas cabíveis ao convívio familiar trivial. Quero guardar na memória o avô que cantava de forma sentimental e contava causos. Comia feijoada com prazer e gostava de receber cafuné deitado na rede. Jogava dominó e seguia num andar lento de pisadas fortes. Inquieto, urgente, com sede de viver. Até a última gota. Aprendi o sentido de viver em família, a minha grande família. Raiz das minhas origens nordestinas.
E quando penso em mim, se hoje fosse o dia derradeiro, iria sem bater o pé, sem relutar. Estou de malas prontas. Talvez com alguns esquecimentos, mas com a bagagem essencial à alma. Não que eu queira deixar a história em tempo prematuro. Mas tenho a sensação de me ver por inteiro, de conhecer até os espaços vazios e o lado obscuro. Sinto que não me economizei em nenhum momento sequer. Então ensaio uma primeira escrita pra o meu epitáfio, caso fosse chegada a hora. E se o espaço não comportar tantas palavras, que fique guardada na memória daqueles que me entendem, que em algum momento da vida experimentaram da minha essência, o sentido que quero ressaltar.
Aqui jaz uma mulher feliz. Alguém que se construiu com o tempo, em pequenos pedaços como uma colcha de retalhos. Às vezes andou em passos largos, em outras mais lentamente ou até retornando a algum ponto da trajetória percorrida, para buscar algo que tinha esquecido no caminho. Tinha uma pisada forte e otimista. Não olhava pra trás, nem guardava remorsos. Apenas algumas culpas devido à natureza condicionada pela busca das escolhas perfeitas. Uma falácia!!! Foi embora uma mulher que se permitiu amar perdidamente, sem ter medo de não ser correspondida, de não receber reciprocidade equivalente. Mergulhou fundo ao se aventurar no desconhecido. Sempre cultivou no coração um otimismo ingênuo, inocente, uma certeza de que tudo sempre dá certo no final. Tinha fé na razão de ser de todas as coisas, de todos os fatos, de todas as pessoas. Jaz uma mulher inacabada, esculpida por suas próprias mãos e pelo coração até o último suspiro, o último segundo.

terça-feira, 1 de junho de 2010

Fernando Pessoa - Pensamentos


"Tenho pensamentos que, se pudesse revelá-los e fazê-los viver, acrescentariam nova luminosidade às estrelas, nova beleza ao mundo e maior amor ao coração dos homens."

"Matar o sonho é matarmo-nos. É mutilar a nossa alma. O sonho é o que temos de realmente nosso, de impenetravelmente e inexpugnavelmente nosso."

"Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já tem a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos."

"A maioria pensa com a sensibilidade, eu sinto com o pensamento. Para o homem vulgar, sentir é viver e pensar é saber viver. Para mim, pensar é viver e sentir não é mais que o alimento de pensar."

"Sentir é criar. Sentir é pensar sem ideias, e por isso sentir é compreender, visto que o universo não tem ideias."

"Todos temos por onde sermos desprezíveis. Cada um de nós traz consigo um crime feito ou o crime que a alma lhe pede para fazer."

"Eu não escrevo em português. Escrevo eu mesmo."

"O fim da arte inferior é agradar, o fim da arte média é elevar, o fim da arte superior é libertar."

"Pedras no caminho? Guardo todas, um dia vou construir um castelo..."

"Para ser grande, sê inteiro; nada teu exagera ou exclui; sê todo em cada coisa; põe quanto és no mínimo que fazes; assim em cada lago, a lua toda brilha porque alta vive."

"Porque eu sou do tamanho do que vejo e não do tamanho da minha altura..."

"O valor das coisas não está no tempo em que elas duram, mas na intensidade com que acontecem. Por isso existem momentos inesqueciveis, coisas inexplicaveis e pessoas incomparaveis."

"Enquanto não atravessarmos a dor de nossa própria solidão, continuaremos a nos buscar em outras metades. Para viver a dois, antes, é necessário ser um."