"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Tema de destaque 16 - Artimanhas do sexo frágil

Muitos são os truques e charmes que nós mulheres usamos para conseguir algo do nosso interesse. O mais antigo e famoso de todos é o tradicional golpe da barriga. Desde que o mundo é mundo, essa é uma alternativa a que muitas recorrem para manter um homem ao lado, mesmo que não seja pelo tempo que elas gostariam. Dizem que uma criança tem o poder de sensibilizar. Em muitas vezes isso acontece, mas o objetivo maior de fazer com que o outro aprofunde os seus sentimentos quase nunca se concretiza. Contudo, sempre existem as exceções...

Então, voltando às artimanhas femininas, o segundo truque mais cotado é o uso das lágrimas, sem dó nem piedade. Quem resiste a aquele par de olhinhos tristes e desconsolados de uma pobre e indefesa mulher que se debulha em lágrimas? Parece até o olhar do gatinho de botas do filme Sherek! Um olhar tão inocente, tão pidão, tão sedutor. E foi a essa artimanha que sucumbiu o chefe de segurança de um dos maiores e metódicos aeroportos do mundo, o Heathrow de Londres.

Recentemente, estava lá, voltando para o Brasil. Naquela fila enorme para passar no raio x, antes de entrar na sala de embarque. Após 15 dias longe de casa, estava contando os minutos para voltar e ter o meu pequenino nos braços. Já estava roxa de saudades. Enquanto esperava na fila, imaginava a carinha dele quando abrisse os presentes carinhosamente escolhidos. Pensei em todos os seus gostos; um de cada lugar visitado. Afinal, uma criança de quase 3 anos já tem suas preferências ora! Carregava comigo cuidadosamente, uma sacola de mão, com um carrinho de controle remoto que seria entregue no dia das crianças.

Já estava com tudo arrumado. Garrafinha de água vazia, bota na mala para não ter que tirá-la, tênis nos pés e casaco na mão. A pasta de dente já acomodada na embalagem disponibilizada para guardar frascos de até 100 ml e fora da bolsa é lógico. Nada de cintos, moedas, celular no bolso, nem pulseiras. Ou seja, nada que potencialmente pudesse disparar aquele alarmezinho irritante ou que tivesse que ser abandonado. Estava tudo milimetricamente calculado e conforme o figurino. Segui ao pé da letra todas as orientações de segurança para embarque em vôos internacionais. Não era possível que depois de tanto sobe e desce não tivesse aprendido a lição. Então, fiquei com meu olhar sarcástico, confesso, observando os supostos inexperientes com um ar de quem já sabia tudo.

Na seqüência de cenas, duas senhoras tiraram quase tudo, literalmente, e, mesmo assim, a maquininha não parava de apitar histericamente. Depois chegou a vez de um grupo de cinco rapazes que tinham a aparência supostamente duvidosa. E pimba! Exatamente como eu imaginava, foram todos revistados minuciosamente, além de terem a bagagem de mão aberta. Nos 20 minutos seguintes, já estava craque em adivinhar quem iria disparar o tal do alarme ou ser submetido a uma revista mais minuciosa.

Finalmente chegou a minha vez. Peguei a bandeja, coloquei os meus pertences com toda a calma e respondi às simples perguntas de rotina que a funcionária fazia a todo mundo sem muita simpatia e com um tom quase mecânico. Tem algum líquido ou cremes na bolsa? Objeto cortante ou perfurante? Moedas, cinto, chaves ou celular no bolso? Está portando alguma arma? Alguma substância perigosa? A resposta foi negativa para todas. Passei pelo alarme com um ar de riso e me sentindo vitoriosa. Não fez barulho nenhum e nada de revista extra. Então, segui para recolher as minhas coisas do outro lado do raio x, mas a esteira parou de repente.

Percebi que a minha sacola de mão não havia passado e imediatamente acenderam uma luz vermelha chamando a atenção de todo mundo, principalmente dos funcionários responsáveis pela segurança. Rapidamente, alguém me perguntou se eu sabia o conteúdo da minha bagagem e respondi que sim; complementei detalhando que era um brinquedo, um carrinho com controle remoto. Então deixaram o objeto duvidoso passar e me chamaram para uma conversa particular. Nesse momento eu já estava preocupada e tinha perdido o sorriso sarcástico do canto da boca. Bem feito!

É muito curiosa a educação dos ingleses. Algo para admirar de verdade. E foi assim que o chefe da segurança me deu a notícia, com toda calma e controle peculiares a alguém que ocupa um posto desses, principalmente sendo inglês. Depois de abrir a caixa, o moço disse: “senhora, infelizmente o brinquedo não poderá seguir”. Perguntei o motivo e a resposta me deixou chocada: “o controle remoto do carrinho tem formato de uma arma”. Então retruquei: “mas nós estamos vendo que não se trata de uma arma, e sim da parte de um brinquedo”. “Podem passar o alarme, tirar os parafusos e revirar tudo, não há nada perigoso nem ilícito aí dentro”. Mais uma vez e com toda a classe, o funcionário complementou: “só será possível levar o carrinho. O controle tem o formato de arma, como já falei. Em função de episódios anteriores, alguns passageiros já usaram objetos com o formato similar a uma arma e causaram pânico no avião. Em função disso, fomos orientados a impedir o embarque de qualquer objeto com essas características”. Então, pedi para despachar o brinquedo junto com a bagagem e ele muito calmamente falou que não era possível; “regras de segurança senhora”.

Nesse momento, a ficha caiu. Quando menos esperava comecei a chorar desesperadamente. Não conseguia me conter. Não parava de repetir que era apenas um brinquedo inocente, para uma criança. Ninguém tinha me avisado no balcão da companhia aérea! Só pensava na carinha do meu filho quando recebesse o carrinho de controle remoto sem controle remoto. E quando ele perguntasse o porquê, eu iria tentar explicar na linguagem dele que o mundo de hoje está muito violento e confuso. E que algumas pessoas fazem coisas ruins e até machucam os outros de forma voluntária. Algumas delas também fazem brincadeiras sem graça, para dar sustos, e tentam fazer os outros acreditarem que estão armadas só pelo prazer de ver os rostos aterrorizados ou por se sentirem bem em bagunçar a ordem das coisas. E quanto mais ia pensando nessa resposta, mais lágrimas caíam do rosto, até o ponto em que o segurança me pediu um minuto. Retirou-se do local e pontualmente retornou com a solução para os meus problemas. “Pode seguir senhora e leve o brinquedo consigo. Não chore mais”. Agradeci fervorosamente, até demais para um britânico, e enxuguei as lágrimas.

Depois de todo o episódio resolvido ainda continuava angustiada. Deveria estar aliviada por ter conseguido garantir a feição de felicidade da minha criança. Já tinha ouvido casos parecidos e até piadas ou lido crônicas, mas nunca tinha presenciado algo assim. Confesso que prevalecia em mim o descontentamento oriundo de questionamentos sem respostas. Não sei se é ingenuidade, mas não entendo a razão de prevalência da relação complementar com constante ataque e defesa entre as pessoas. Em que mundo nós vivemos? Até que ponto pode chegar uma sociedade estressada, em que a parte avulsa de um brinquedo pode representar perigo ou uma potencial crise de pânico? Quem são essas pessoas que encaram essas ações como simples brincadeiras descompromissadas e sem a intenção de matar, mas com a intenção de ferir? Até onde pode chegar o lado negro do ser humano, que muitas vezes é cruel e nada condescendente com o próximo?

Fico pensando em que parte do sistema contribui para alimentá-lo e em que situações eu poderei interferir para ajudar a resgatá-lo. Vivemos em uma sociedade doentia, caótica, confusa e desconexa. Atualmente, dá-se mais importância a acontecimentos dessa natureza ao invés de nos preocuparmos com as mazelas do mundo. Mas é assim que funciona. O novo chama mais à atenção. Nossos olhos já estão acostumados à miséria da lida precária, à pobreza de espírito e, principalmente, à falta de sentido para a vida. Portanto, convido a todos a fazerem um exercício. Experimentemos olhar com mais afinco para o horizonte ao invés de nos assustarmos com as formigas que transitam aos nossos pés, porque quem não olha para cima não consegue enxergar as estrelas.

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