"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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quinta-feira, 28 de outubro de 2010

Tema de destaque 17 - Olhar para dentro

Amsterdã é um lugar lindo e incomparável. Poderia até fazer parte daquelas listas temáticas que reúnem as coisas e os lugares que deveríamos experimentar antes de morrer. Deveria também ser mundialmente famosa por suas pequenas singularidades, que vão muito além do uso deliberado de drogas nos bares e da rua da luz vermelha. Foi assim que batizei o bairro que comporta as famosas vitrines, onde as mulheres expõem o corpo e vendem sexo para maiores de idade. A cidade tem uma conformação diferente e muito peculiar. Parece um formigueiro humano e de bicicletas também, com gente indo e vindo de todos os lados. Gente preta, branca e amarela. Uma cidade cosmopolita com uma pitada de charme europeu.

Entretanto, dentre todas as paisagens, novidades e atrações, dois museus me chamaram a atenção em especial. Um deles é a Casa de Anne Frank, fundado na década de 1960, em homenagem a ela, sua família e demais pessoas que permaneceram refugiadas no edifício por cerca de dois anos. Ficaram todos escondidos durante o período de ocupação dos Países Baixos pelos nazistas, na Segunda Guerra. Criado com o intuito de fortalecer os laços entre diferentes culturas, religiões e raças, representa um ato silencioso e pacífico de resistência e protesto ao preconceito e à discriminação das diferenças.

Depois de percorrer o museu e assistir ao emocionante depoimento do pai dela, imaginei quais motivos levaram aquela menininha de 13 anos a ter pensamentos tão profundos sobre as questões da vida. E mais, registrá-los em um diário com o compromisso de quem estava escrevendo uma parte da história da humanidade. Quem sabe foram os efeitos da guerra, do preconceito, da insegurança, do isolamento, do medo? Talvez um pouco de cada; tudo junto. Mas sem desconsiderar a relevância do momento histórico, minha intuição apontou mais uma razão: quando se tem a visão para fora bloqueada com uma venda negra, tendemos a desenvolver outras formas de percepção do mundo. O que antes se via com os olhos, passa a ser visto pelo lado de dentro, com o coração, mais precisamente. É o que nos resta se quisermos recuperar a sensação de estarmos vivos.

O mundo exterior, cada vez mais, oferece-nos, simultaneamente, milhares de dispositivos para destinarmos nossa atenção. Insere-se na pele, de forma recalcitrante, um modo de vida mutante, fluido e multifacetado. Não conseguimos dar conta de ver tudo, que dirá de absolver o conteúdo disponibilizado e veiculado aos quatro cantos do mundo. Tempo e espaço não constituem mais fatores limitantes para a difusão da nova onda. Exclusividade, individualidade e humanidade são atributos ultrapassados e vencidos pela era da cibernética. Tudo é sinônimo de nada em um piscar de olhos. Basta uma novidade cair nas graças do povo que automaticamente ficamos para trás. Desatualizados, obsoletos, pré-históricos. Contrapondo-se essa modernidade, um cativeiro teria como lado positivo a possibilidade de obrigar aquelas pessoas a se olharem nos olhos, a conversarem entre si e, principalmente a despertarem o senso de viver em comunidade.

No contexto do ter para ser, enfrentamos uma fila imensa na madrugada, só para presenciar o lançamento do modelo mais novo de um aparelho celular ou de um carro. Fazemos das tripas coração, mas pagamos o preço que for necessário para sermos os primeiros a possuírem os bens disputados. Todos esses paramentos fazem parte da escultura viva do homem da atualidade. Cada um ao seu modo. Hoje, rosa; amanhã, preto; depois, incolor; um dia, nada. Aos poucos, anestesiamos nossos sentidos e passamos a responder aos estímulos sem expressarmos voluntariamente nossas vontades. Distanciados das nossas origens, tornamo-nos marionetes manipuladas por um mundo virtual e intangível, que é a representação viva do exagero material. Tudo o que desejamos fervorosamente é ser mais um na multidão. Não destoar em nada. Quanto mais parecidos, melhor. Dá trabalho e custa caro acompanhar o ritmo frenético da moda que personifica um modelo de ser: o de fora.

Partindo do princípio de que esse modus operandi está dando espaço a uma era de pessoas robotizadas e semi-humanas, é lícito agradecer à vida por todos os acontecimentos que nos remetem à nossa essência. É o reconhecimento de um resgate de si mesmo. Ser salvo por entrar em contato novamente com os sentimentos: o lado de dentro. Na maioria das vezes, esses encontros do eu com ele mesmo, ocorrem à nossa revelia. Só em um estágio de muita maturidade e depois do acúmulo de muitas lutas internas para que alguém se veja capaz de se encarar o desafio por livre e espontânea vontade. Fora isso, quase sempre os fatos estão impregnados de sofrimento e têm um caráter imperativo.

Ou dá, ou desce; ou trepa, ou sai de cima; ou vai, ou racha... Só um ultimato ou algo sobrenatural para nos trazer de volta ao prumo. Não é fácil sair da inércia e perder a sensação de segurança, pseudo controle e comodidade. Concordo que sofrer dói, desgasta, deixa marcas... Mas às vezes, só no tranco para a gente encarar os desafios. Em algumas situações, só mesmo uma guerra ou um acontecimento de grandes proporções para unir uma massa significativa de gente em torno de um mesmo ideal, voltando a ser humano. Em momentos assim, despertamos a solidariedade, a indulgência e a condescendência com o outro. São três fêmeas com significados parecidos, mas que diferem sutilmente entre si. O mais importante é que juntas, trazem à tona a bondade verdadeira e conduzem o homem aos tempos de paz; por dentro e por fora. Traz a liberdade: ser por fora o que se sente por dentro.

É certo que o medo de sofrer pode desencadear a manifestação do lado obscuro do ser humano, bem como gerar a obsessão por vingança, ou mesmo uma reação mais amena, como resultado do nosso instinto de sobrevivência. Contudo, é inegável que essa condição de vulnerabilidade coletiva também pode nos remeter a um lado bom, quando estamos em uma situação que envolva a relatividade com outras pessoas em situações mais difíceis. É como se existisse uma linha tênue e imaginária entre os dois extremos. Cabe a nós fazermos a escolha de que lado nós queremos estar: o de dentro ou o de fora?

Ao olhar para dentro poderemos nos deparar com algo muito assustador ou com sentimentos que têm a capacidade de nos fragilizar, tornando-nos seres mais vulneráveis. Por outro lado, é assim que conseguimos acessar nossos tesouros inatos, as virtudes de cada um, a origem de tudo, inclusive a nossa. Ao vivenciarmos o processo ficamos em meio a uma crise de pensamento, trazendo consigo o conhecimento que transforma a nossa visão de mundo. Dessa forma, surgem dois mundos: o do ser e o do não-ser. No primeiro, é necessária a entrega absoluta, sem economias nem restrições, embora devam ser observados os balizamentos para garantir a saúde do bem viver. Já o segundo, incorre naquele caso em que as pessoas vivem como fantasmas e têm a sensação de terem passado imunes à vida. Sem passado, nem presente e muito menos futuro.

Então, neste exato momento, pule do precipício. Desça do muro,encare o tranco e desafie o medo e os perigos ao seu redor. Corra riscos sem temer ter que juntar os caquinhos daqui a cinco minutos, cinco dias ou cinco anos. O que vale é viver e tornar-se alguém melhor depois de um tempo. E melhor ainda é se nessa caminhada, conseguirmos alegrar a vida de outras pessoas ao mesmo tempo em que buscamos a nossa felicidade. Com o passar do tempo se aprende a profundidade adequada para cada mergulho. Mas para isso é preciso muito treino.

Portanto, sinta-se abençoado. Você tem a faca e o queijo na mão por não precisar ser submetido a uma condição extrema de sofrimento para conseguir olhar o seu interior e compartilhar sua essência com outras pessoas. Use e abuse da interação a dois, a três, a quatro... Quanto mais, melhor. Não falo da promiscuidade superficial provocada por sensações efêmeras. Ressalto a explosão do encontro de almas afins; a sensação do fervor do sangue que corre nas veias; a alegria de viver por sentir-se alimentado com amor; da esperança de ser um semeador.

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