"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Tema de destaque 13 - Paciência

Recentemente visitei o museu de Vincent Willem van Gogh, em Amsterdã, Holanda. E depois de conhecer detalhes da vida e do sofrimento mental desse pintor, cresceu ainda mais a minha admiração por ele. Acho que tenho uma quedinha por pessoas problemáticas; elas têm uma inquietude que me atrai. Creio que é a percepção de uma insatisfação que inspira a busca por mudanças. Dessa forma, passei a visualizar o artista taxado de doido, além de suas obras fortemente influenciadas pelo impressionismo. Direcionei o meu olhar ao ser humano falível e nostálgico como todos nós o somos em algum momento da vida. E até doidos também, quando decidimos dar viradas radicais nos rumos do futuro, ao quebrar tabus e antigas tradições familiares, quando descordamos abertamente do posicionamento da grande maioria que nos rodeia, ou simplesmente, quando decidimos parar e não dar mais nenhum passo sem o consentimento formal da nossa consciência perturbada.

Algo que também me causou grande comoção nessa pequena jornada interna na essência de outra pessoa foi a sua relação de amizade tão forte e profunda com o irmão mais novo. Era uma ligação tão intensa, que Théo morreu cerca de seis meses depois de o pintor se suicidar com um tiro no peito. Brigavam e descordavam entre si com relação a pontos de vista paradoxais, mas estavam sempre juntos e unidos por um bem querer maior que as dificuldades que enfrentavam. Tudo bem que houve um motivo que perpassou a sua vontade própria; uma enfermidade. Mas às vezes, nossa alma tem a capacidade de atrair inconscientemente, os nossos desejos mais salutares e os obscuros também. Pedis e obterás... Não é assim a lei que governa o universo?

Durante todo o percurso no museu, que dispõe as obras em ordem cronológica, destacando a evolução dos dotes artísticos de van Gogh, é possível se deliciar com trechos de suas cartas ao irmão, os dizeres mais íntimos desse artista inconstante e atazanado pelos ruídos da sua própria mente. Nos dizeres, são narrados os momentos mais decisivos e importantes da sua vida. Conta quando largou o ramo da administração e se tornou pastor, seguindo o modelo do pai; quando entrou em crise existencial e resolveu tornar-se artista; e até quando se viu encurralado pela vontade de habitar outros mundos, por não mais suportar as dores do corpo e da alma. Sentia que não pertencia mais àquela realidade.

Lembro muito bem da época em que entrei em crise com a engenharia. Achava tudo muito técnico, mecânico e frio. A minha natureza sentimental, utópica e ideológica não me permitia criar um vínculo forte com o caminho que eu havia escolhido. Pensei em diversas opções de reconstruir meu campo profissional e, ao acender das luzes, pensei em me graduar em psicologia. Sempre amei as pessoas e estudar as diferentes manifestações da natureza humana. Era perfeito, mas antes de me aventurar em um vestibular iniciei uma especialização em Psicologia Junguiana. A experiência foi muito proveitosa e me trouxe vários esclarecimentos sobre a minha vida, uma vez que nessa época eu estava fazendo terapia.

Contudo, nada acontece por acaso e, na mesma época, engajei-me em um trabalho que combinava os conhecimentos sobre engenharia, meio ambiente, saneamento e urbanização de favelas. Que felicidade. Essa foi uma das melhores experiências que já tive na vida. Retomei o ânimo e consegui o que queria: introduzir humanismo ao meu trabalho; era o ingrediente que faltava. Atualmente não me vejo fazendo outra coisa, senão trabalhando com populações de interesse social. Também percebi o quanto é importante a existência de profissionais das ciências exatas que usem, além da mente, o coração nas suas atividades mais corriqueiras.

Mas voltando a van Gogh, quando menos esperamos, acabamos imersos no mundo de outra pessoa que em alguns aspectos retrata a nossa história, os medos, as inseguranças e até os arroubos de autoconfiança que surgem com os novos sonhos e paixões. Percebemos todos os seus conflitos, angústias, o sentimento de abandono pela vida por não conseguir concretizar seus sonhos. E depois de poucos instantes de reflexão, é possível concluir que a normalidade se expressa por meio de um comportamento irregular e inconstante. Ou seja, a normalidade não tem nada de normal! É inconstante e às vezes inalcançável. E ainda bem que a vida flui dessa forma, porque é a contradição entre a sensação de saciedade momentânea do espaço preenchido e da ausência do vazio, que movimenta a nossa vontade de buscar construir algo e de nos transformarmos em tudo aquilo que desejamos e acreditamos ser capazes de alcançar.

Quantos de nós já vivemos algo parecido com o que aconteceu ao pintor? Mesmo que a vontade de abandonar a vida não tenha se constituído em uma opção concreta, quantas vezes já desejamos sumir e começar tudo sem passado, sem um legado que obrigatoriamente nos vinculasse a um estado de ser? Fugir, sair sem rumo, esquecer o que passou e ter coragem para começar tudo novamente. Não é preciso ir tão longe, atravessar um oceano, visitar um país onde se fala outra língua para descobrir a resposta. Somos gente em qualquer parte do mundo. É claro que as peculiaridades culturais, as mudanças de valores em tempo e espaço, e principalmente, a natureza e a história de vida de cada um, influenciam significativamente os rumos e os humores de qualquer ser humano.

O que pude perceber, olhando para mim mesma e especulando sobre as minhas próprias inquietações, é que há uma similaridade comportamental entre diferentes pessoas nos momentos de aflição. Retrair-se, permitir-se sofrer, chorar, ficar descrente, se agarrar a alguém, arrumar-se na posição fetal... Percebe-se então, dois grupos predominantes, com algumas interseções, é claro: os que querem sobreviver e seguir adiante e aqueles que não enxergam a diferença entre estar vivo ou não. Apesar de todas as minhas lamentações cíclicas, creio que minha natureza se adéqua mais ao primeiro tipo. Isso, não quer dizer que não me veja, em algumas situações, com a postura de quem traz consigo a sensação de um cansaço eterno. Por outro lado, enxergo cada dia como uma possibilidade de fazer grandes mudanças, por meio de pequenos gestos de amor e carinho para comigo e com o próximo. É uma questão de treino e aperfeiçoamento com o tempo. É colocar-se na posição de um aprendiz apaixonado.

Disciplina, força de vontade, fé em si mesmo e um pouquinho de paciência são ingredientes indispensáveis a qualquer um que queira transpor barreiras e superar limites. Não falo do autocontrole nem do orgulho imbuído do convencimento que emerge da vaidade. Ressalto apenas a segurança desperta pela crença no encadeamento orientado dos fatos da vida. Nossos sonhos não têm tamanho definido, não fazendo muita diferença se são pequenos, médios ou grandes. São sonhos e, por essa razão, já são importantes desde a origem. Contudo, para realizá-los, precisamos desenvolver uma responsabilidade consciente, além do mapeamento de nossas potencialidades e fragilidades. Assim, fica mais fácil descobrir em quais aspectos deveremos fazer ajustes e buscar fortalecer ou minimizar. E até ver se dá pra encarar o desafio no momento em que a idéia surge ou se é melhor deixar o tempo passar um pouco e amadurecer como uma forma de treinamento e preparação.

Então, pensei: só mais um pouquinho de paciência... Bastava ter esperado um pouco mais e van Gogh teria realizado em vida o sonho de ter se tornado um grande artista. Sua intenção não era seguir um estilo determinado nem um único tutor. Buscava retratar os sentimentos das pessoas, como ele mesmo afirmou. Nessa tentativa, acabou retratando seus próprios sentimentos, que no fundo, refletem a alma de pessoas inquietas com a monotonia e mediocridade do mundo. Depois dele e com ele, surgiu o Expressionismo. Um movimento cultural que destacava a interiorização da criação artística ao invés das diversas formas de exteriorização. Cada artista projetava uma reflexão individual e subjetiva, sugerindo que a obra de arte seria o reflexo direto do mundo interior do artista expressionista. No ramo da pintura, o Expressionismo foi descrito como uma pintura dramática, subjetiva, que tinha como objetivo expressar sentimentos humanos.

Assim como ele, muitas outras criaturas se perdem por deixarem o medo do embate diário superar a necessidade de assistir ao final do filme, ver o desfecho das coisas. Sei que essa atitude configura um pouco que exige o esforço de proporções infinitas, mas se as inquietudes não forem adestradas e transformadas em tesão pela vida, o trabalho diário, possivelmente se perderá. E restará apenas o cansaço frustrante das sucessivas tentativas inalcançáveis, deixando predominar o sentimento de incompetência e fracasso. Só mais um pouco de paciência e chegaremos lá; um dia todos nós chegaremos.

Encerro esse texto deixando trechos da sábia música de Lenine que inspirou o título da reflexão: Paciência. Pensemos que tudo é uma questão de tempo. Tudo tem sua hora e momento mais apropriado para acontecer. Nem antes nem depois. O importante é estarmos atentos na estação, para quando o trem passar, ingressarmos nele e rumarmos no destino certo. Mesmo com dúvidas, uma vez que elas são inerentes à vida. Os riscos são apenas um detalhe. E só é possível fazer inferências a respeito de suas proporções. Nenhuma previsão é exata; nada está sob a égide do controle absoluto. Mas se pretendemos ser inteiros, devemos estar dispostos a pagar o preço da completude. Sofrer, sorrir, chorar, sentir-se cansado, sorrir novamente. Lutar, viver, desabrochar, crescer e depois transcender na forma de uma borboleta com asas largas e cores cintilantes.



“Mesmo quando tudo pede
Um pouco mais de calma
Até quando o corpo pede
Um pouco mais de alma
A vida não para...

O mundo vai girando
Cada vez mais veloz
A gente espera do mundo
E o mundo espera de nós
Um pouco mais de paciência...”

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