"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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quinta-feira, 28 de junho de 2012

Tema de destaque 31 - A dama de ferro

Recentemente, assisti ao filme A Dama de Ferro, que retrata parte da vida íntima e da ascensão política e declínio da ex primeira-ministra da Inglaterra, Margaret Thatcher. Mostra a trajetória de uma mulher que marcou uma época por ultrapassar os limites impostos ao sexo feminino, ao assumir o posto mais alto do poder de um Estado, desafiando inclusive a sorte predestinada pelas suas origens humildes e nada simplórias.

Uma particularidade que prendeu a atenção no filme foi que, ao mesmo tempo em que se mostrava o histórico que deu notoriedade mundial a ela, eram retratados com simplicidade os dilemas diários enfrentados por uma mulher que tentava conciliar, casamento, filhos e um sonho a seguir. Também não deixou de mostrar que os limites do corpo e da mente chegam para todos. Para ela, chegou fazendo-a demente.

Ao compararmos a mulher faceira e independente retratada no início do filme com aquela frágil senhora dos tempos finais, fica difícil perceber similaridades. Os constantes delírios com a figura do companheiro falecido e a falta do filho que mora do outro lado do mundo jogam na nossa cara que a solidão é algo insuportável em qualquer parte do mundo e para quem quer que seja. Mesmo para alguém que algum dia foi um ícone representativo do poder.

Senti-me tocada pela história daquela mulher que nem conheço e não tenho nenhuma intimidade. Mas embora façamos parte de diferentes momentos da história da humanidade e eu me recolhendo à minha insignificância de pobre mortal, circulamos realidades e tempos diferentes, porém, encontramos o lugar comum de ser mulher e vestir a carapuça com todos o penduricalhos que acompanham a figura feminina.

Margaret desafiou preconceitos, rompeu barreiras e tornou-se a primeira mulher a integrar o Parlamento Inglês. Dizia-se incapaz de viver apenas dedicada ao lar; buscou seguir um sonho que se tornou o ideal de uma vida inteira, e recaiu na falácia da mulher comum: viver seu processo de individuação tentando equilibrar a dedicação demandada pela figura da mãe de família. E ainda mais: tentar ser boa o suficiente nos dois papéis.

Para seguir em frente em qualquer aventura que implique compatibilizar multi-objetivos e a diversidade de atores, há de se pagar um preço que às vezes é insuportável, ou quase isso. O raciocínio é bem simples na teoria, mas muito complexo para pôr em prática. Quanto custa seguir um sonho e viver uma vida que não é somente sua, deixando dependentes carentes e expostos? Como optar por uma vida em que as escolhas que deveriam ser pessoais e individuais desabam como efeito em cascata sobre aqueles que literalmente dependem de nós? Como se compatibiliza o sofrimento de ter que adiar sem prazo ou cortar pela raiz a concretização de sonhos que vêm tatuados na nossa carne, em prol do bem de uma pessoinha que em algum momento também foi ou é um grande sonho?

Eu sei que uma escolha não inviabiliza a outra. Em tese! Quando se escolhe ser mãe e cumprir grande parte do que é proposto para essa função, há de se ter desapego. Mas os ponteiros do tempo continuam rodando e as nossas necessidades pessoais de mulheres pós-modernas continuam latentes. E o que deveria ser vivido com naturalidade, em muitos momentos é encarado com sofrimento. É como se fôssemos roubadas de nós mesmas. Um sequestro relâmpago várias vezes ao dia.

Então, como se ensina ao cérebro e ao coração que demos uma saída de cena momentânea de alguns aninhos para acompanharmos melhor a criação dos pequeninos? E se não optamos por sair de cena nos primórdios da vida dos pequenos, quando resolvemos retornar e reivindicar o nosso posto de progenitora lá na frente, falta o gancho principal: a intimidade. E não existe relação sem esse ingrediente básico.

Ser importante para outra pessoa não é algo que se empurra de goela abaixo pela autoridade ou por cumprimento de cargo e função. Em alguns casos pode até existir um respeito por alguns personagens que encenamos. Mas quem não bota a mão na massa, nunca se promove de coadjuvante para protagonista. Os papais que me perdoem, mas na maioria das vezes, as mamães de responsa são as verdadeiras protagonistas da vida familiar e são elas que num primeiro momento estabelecem relacionamentos afetivos profundos com os filhos ainda bebês.

Escolher ser mãe de família em detrimento de desenvolver um projeto de vida pessoal é uma grande saia justa. Na verdade, não acredito que deva haver uma escolha. Contudo, para segurar o trampo é preciso ter muito equilíbrio e determinação. Se a única opção fosse a escolha seria uma puta sacanagem com as mulheres. Existe um mundo a seus pés, mas você só pode desfrutar de uma única faceta sem direito de olhar para trás; sem negociações futuras ou pregressas... Quem aguenta com isso? Se olharmos do ponto de vista do ser humano e não simplesmente pela questão de gênero, iremos perceber que embora a nossa natureza seja representada por uma figura dominante de nós mesmos, na íntegra, somos a diversidade em apenas um.

Quem somos nós? Quantas acepções do nosso modo de ser se manifestam ao longo de nossas vidas e até em um único dia? Acredito que essa multiplicidade de seres que integram a realidade de uma pessoa tem início na busca pela satisfação chamada de felicidade.

Se traçarmos uma linha do tempo que configure as principais etapas de nossas vidas, podemos perceber que passamos os primeiros anos concentrando esforços no objetivo principal de alcançarmos a nossa face predominante. Existem pessoas que focam no casamento e no desempenho da família, mas há aquelas que objetivam ser o melhor profissional possível. Também há as que parecem estar perdidas e, ao invés de buscarem algo, deixam ser levadas. Maravilha que existem os comuns, aqueles da grande maioria que tenta viver um pouco de si a cada dia.

Esta sou eu: mulher, mãe, profissional, dançarina nas horas vagas; cantora de chuveiro; artista de trabalhos manuais por organizar as festinhas dos meus filhos; cozinheira de final de semana; dona de casa por fazer um lar funcionar de forma harmoniosa e esposa depois de checar se todos estão dormindo, se tudo está em ordem e de apagar a luz antes de deitar.

Sou uma pessoa que busca assumir e vivenciar suas facetas de mulher, que não tem medo de ser feliz nem de ficar triste. Sou a metamorfose ambulante a que se refere Raul Seixas e que não se satisfaz apenas com a representação de um pedaço de sua essência. Sou muitas em uma e creio que a minha felicidade se concretiza nos momento em que permito o encontro de todas elas.

Um comentário:

  1. Belo texto! Parabéns pelo seu blog!
    Também gostei muito desse filme. As cenas que mais me chamaram a atenção foram as reuniões em que Mrs Thatcher era a única mulher em meio a dezenas de homens. E a Dama de Ferro sabia se impor!
    Independente da sua atuação política, temos que admitir que ela foi uma grande mulher, muito à frente do seu tempo.
    A solidão do final, a demência, o desprezo do filho, o cansaço da filha, o fantasma do marido.... qualquer um está sujeito a passar por isso.
    Por mais que nos esforcemos, por melhor que façamos, a perfeição não existe. Somos humanas e ainda temos que lidar com diversos seres humanos que nos cercam, cada um com sua complexidade... E haja paciência, sabedoria e jogo de cintura! "É preciso saber viver"!
    Outra grande mulher nesse filme é Meryl Streep. Oscar mais que merecido, atuação brilhante!
    Gostei muito dos seus textos e virei visitá-la mais vezes, posso?
    Um abraço.

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