"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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segunda-feira, 9 de maio de 2011

Tema de destaque 27 - Eu não sou de ninguém

Sempre vivi uma independência torta e desde criança não cultivava o hábito de andar em grupinhos. Cheguei a cogitar que isso era algum tipo de problema. Não pertencia a nenhum deles especificamente, mas circulava entre todos e ficava bem assim. Na adolescência, isso era mais perceptível e os grupos representavam os diferentes guetos da escola. As patricinhas, os descolados, os “Nerds”, os populares, os esportistas, os riquinhos, os estranhos que ficavam de escanteio...

Percebi que não tinha preferência por circular em nenhum deles. Não que eu não sentisse os anseios que afligem a maioria dos jovens. É que eu me sentia bem em ser livre; ser de todos e ao mesmo tempo não pertencer a ninguém. A minha lealdade estava afinada com o senso de justiça e só. Não era nada calculado. Apenas acontecia assim e só percebi isso depois que o tempo passou. Foi um encaminhamento espontâneo.

Lembro que não gostava da frescura das patricinhas, não concordava com o ar esnobe dos riquinhos, não me atrevia a experimentar metade das coisas que os descolados faziam e me sentia popular com todos com quem me relacionava. Além disso, a criação que recebia em casa me mostrou uma forma consciente de encarar a vida e as pessoas, inclusive de encarar períodos de privações, crises e adversidades.

Agora é possível entender que estávamos sendo preparados para encarar a vida como ela é. Claro que maturidade não dá em árvore e que às vezes é algo muito difícil para um adolescente vivenciar. Dói mesmo! Mas depois que os turbilhões passam, vale a pena pagar o preço. Percebo que na infância era constantemente desafiada a me portar como uma adolescente e quando me tornei adolescente tinha que responder como uma adulta.

Não segui nenhum tipo de doutrina, foi a necessidade mesmo. Vivenciamos muitas dificuldades compartilhadas com toda a família e isso demandava compreensão por parte de todos, até do mais novo. Nada era omitido e todas as responsabilidades diárias eram divididas. A casa era de todos e precisava funcionar independente das queixas e lamentações individuais de cada um de nós.

Aprendi a passar, cozinhar, cuidar de criança, de jardim e de cachorros. E não vejo esse processo como um curso de imersão na formação de Amélias. Encarei o aprendizado como uma experiência indispensável para dar conta de gerenciar uma casa e, consequentemente, de uma cuidar de uma família.

Não sei se essa é a receita ideal para formar indivíduos, mas confesso que hoje em dia valorizo o esforço dos meus pais em terem nos ensinado assim. Também agradeço aos meus irmãos pelo companheirismo de sempre, que ajudou a superar os tempos difíceis e aprender a dividir o peso das responsabilidades com outras pessoas.

Recentemente, percebi-me em uma situação que despertou a curiosidade sobre o assunto do início. Uma colega de trabalho me questionou de forma muito sentida porque eu não havia convidado ela para lanchar! Que cena dramática! Fiquei tocada, é verdade. Tanto que refleti a respeito. O engraçado é que não pensei a respeito da falta do convite, mas sim sobre os aprendizados mais tenros.

Imediatamente lembrei-me das frases recorrentes da minha mãe que repetia a minha avó. Ensinava que não deveria fazer o que todo mundo faz, só por fazer. Dizia que os modismos passavam e que as pessoas deveriam aceitar as outras como elas são e não pela aparência ou posses. Pregava valores cristãos e impregnados do senso comum de cidadania, mostrando que só devemos fazer ao outro aquilo que desejamos para nós. Ela era a dona da verdade em carne e osso.

Cresci impregnada com essa essência. E, certa vez, no calor das discussões sobre política e economia com meu pai, fui taxada de comunista. Foi uma cena muito hilária de se ver. Ele, completamente da direita e eu, com aquele discurso de defesa dos mais fracos e oprimidos. Foi uma comédia. Retruquei com ar de provocação. Disse que se tivesse nascido na época de caça às bruxas ou das lutas comunistas, provavelmente acabaria queimada em praça pública ou brigando por um país mais justo e inclusivo. Atualmente, faço isso de outras formas. 

Ao revelar esses pensamentos compreendo que os ensinamentos, do tipo lugar comum para quem vê de fora, foram essenciais à minha sobrevivência, bem como para que eu deixasse aflorar a minha personalidade assim como ela é.

Enquanto algumas pessoas valorizam o superficial e as relações descartáveis, escolho a vivência mais íntima e profunda. Adoro apreciar o belo e as novidades, mas não desperdiço a experiência disfarçada na figura de um ser idoso. Gosto de desafios e não me recuso a seguir o fluxo da vida, qualquer que seja.

Em situações difíceis, confesso que me dou ao direito de chorar, de ser frágil, de pedir colo e de reconhecer como sou pequenina. Não adianta estar disposta a encarar as adversidades e me largar em uma onda turbulenta sem ter os preparos devidos. Viver assim seria completamente insano e imprudente. E então, ao invés de me fazer fraca, como muitos pensam, eu renovo a minha crença em mim mesma e encontro a força necessária para dar saltos.

Entre um erro e um acerto, um susto e uma boa surpresa, um gosto novo e o saborear do nostálgico, a gente vai descortinando uma vida cheia de emoções e de significados. Situações e eventos que nos moldam e que, se bem aproveitados, fazem a diferença na consumação da realização pessoal ou em família.
Não somos apenas pessoas nascidas para povoar o mundo. Viemos aqui para fazer a diferença e isso significa nos questionarmos constantemente a respeito do que temos feito com os nossos talentos. Enterrá-los ou desenvolvê-los e compartilhá-los; eis a questão?

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