"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

Tema de destaque 22 - Profissão Comentarista

Atualmente, existe especialista para tudo neste mundo. Hoje, além de nos dizermos como pessoa, quando descrevemos quem somos fazemos o detalhamento da nossa formação acadêmica ou referência à profissão. Uma especialidade para dizer quem somos e uma sub-especialidade parar fazer o diferencial. Com essa multiplicação de facetas da rotulagem, surgem juntamente as novas funções. Entre elas, a função comentarista. Tem comentarista para todas as coisas: esportes, moda, etiqueta, política, economia, sexo, meio ambiente. É uma lista infindável que cresce na mesma velocidade com que surgem os novos assuntos e modismos na mídia.

Contudo, há um comentarista negligenciado e que não consta nessa lista. É o cronista. Por que essa associação? Muito simples de responder. O cronista é aquela pessoa que comenta a vida como ela é. Não é especialista em nada, além da sua forma peculiar de olhar a vida e traduzi-la em palavras. Mas sabe de tudo um pouco e não tem reservas em mostrar o que pensa. Sua profissão se assemelha às práticas dos antigos filósofos.

Porém, uma diferença sutil e certeira distingue um do outro. O cronista fala para todos e não apenas para o público seleto dos teóricos eruditos e super esclarecidos. Além disso, não busca deixar um legado ideológico que seja capaz de descrever todas as pessoas em uma única teoria universal. Ele sabe que os termos enquadramento e pessoas não são compatíveis. Sua maior facilidade é comentar os fatos, quer se refiram aos anseios alheios quer estejam relacionados à sua própria individualidade.

Fica criada a profissão comentarista da vida. As regras básicas de seu exercício envolvem um toque de humor aqui, uma pitada de ironia ali... Um texto dramático, outro leve e cristalino. E assim, são compartilhadas reflexões expressadas por uma linguagem simples e ao mesmo tempo profunda sobre variados temas da realidade humana.

Deixam sua marca registrada: um quê de intimidade e acabam por completo com o tom professoral de quem acredita ser capaz de ter receitas prontas e eficazes para todos os males. Amenizam a sensação de tristeza que às vezes sentimos por vivenciarmos experiências ruins; a sensação de ter falhado de forma recorrente em algo que já não é novidade e que deveríamos superar; a sensação de nos sentirmos inferiores e falíveis quando olhamos ao redor e aparentemente enxergamos todos os outros bem encaixados, no seu devido lugar, menos nós.

Deverão estar aptos a conquistar a atenção do leitor pelo fato de instigarem sua auto-reflexão de maneira amena, sem rodeios, aguçando a sensibilidade dos sentidos. Em alguns casos conseguem despertar a verdadeira vontade de mudar e de perseguir sonhos. Em outros, se justificam apenas por despertarem a percepção de que a linguagem usada pelo mundo para escrever suas histórias pode ser decifrada, apreendida e internalizada.

Tudo que faz parte do cotidiano é material de pesquisa e inspira uma contextualização filosófica a respeito da vivência diária de cada ser. Basta olhar uma cena corriqueira na mesa do lado, assistir ao noticiário de um fato sem muita importância ou apenas acordar com a sensação de precisa dizer algo.

Vida, morte, maternidade, sexo, casamento, relacionamentos, preconceito e muitos outros, são temas recorrentemente explorados. O interessante é que cada novo texto imprime um olhar diferente, outro ponto de vista recheado das impressões de outra mente, que resulta de uma história em particular. A mágica desses profissionais é mostrar a seus leitores que eles não estão sozinhos numa multidão de perfeitinhos. Que não são os únicos a desmoronarem ou ficarem emocionados “apenas” porque se sentiram traídos, abandonados, rejeitados, felizes, realizados...

O cronista, ao contrário dos humanistas pragmáticos, não está atrás de respostas que sirvam para todos. Essa tentativa é uma falácia. Confesso que eu mesma já pensei que seria possível identificar algum tipo de lei universal que influenciasse a todos, concomitantemente. E que o resultado das nossas respostas aos estímulos recebidos deveriam ter uma origem similar. Pensei em ser minha própria cobaia, tal como tantas figuras usaram suas próprias impressões para descrever os efeitos psicotrópicos de entorpecentes ou caracterizar tipos psicológicos. Como estava enganada! Bastaram mais alguns anos de pouca experiência e percebi que, em se tratando de pessoas, nada é exatamente igual nem totalmente convergente. O padrão vigente é a individualidade.

É claro que alguns fatos imprimem sentimentos parecidos e que há traços de similaridades a até certo ponto. Por outro lado, a combinação das experiências, marcas e cicatrizes que cada um traz em si são como uma impressão digital. Embora existam os clichês todo fim tem um começo ou nada dura para sempre, sabemos que nenhum desfecho é igual e que as razões para se começar uma nova empreitada são as mais diversas possíveis. Cada qual tem seu gosto, sua essência, suas tendências que tornam sua alma única e insubstituível. Por isso, há tantos estilos e linguagens em voga para se falar uma mesma língua, para se contar um mesmo fato ou simplesmente para se dizer sinto muito.

Acredito que um dos segredos daqueles que têm intimidade com as palavras e impressões sobre a realidade, é a habilidade em enxergar os outros como eles são e saber explicar a essência daqueles com quem desfrutam de um convívio mais próximo. Detêm a vontade exagerada de sentir o outro e de se emocionar com a vida para depois dar suas próprias impressões dos fatos. Um cronista gosta de ver os acontecimentos com seus próprios olhos e descreve os eventos com sua sensibilidade exacerbada acerca da arte de sentir. Emerge do seu peito uma curiosidade faminta de descobrir o que está escrito nas entrelinhas. Raramente se abstém de proferir sua opinião, e quando fica em silêncio, sabe que no fundo, é a melhor coisa a fazer.

Então experimente um exercício simples, mas revelador. Olhe ao redor e tente visualizar uma cena que lhe impute algum tipo de sentimento. Exercite a criatividade e imagine os fatos e as implicações implícitas de todo o contexto. Tende descrever sua percepção e, se chegar a esse ponto da brincadeira, irá perceber que a cada linha escrita estarão incrustadas suas vivências pessoais. Em tudo que fazemos acabamos deixando uma pista do que somos. Um rastro do nosso passado e as expectativas que temos sobre o futuro.

Ao refletirmos sobre um episódio pessoal estamos exercitando a nossa capacidade de refletir e comentar sobre a vida. Não importa se a linguagem que usaremos é rebuscada ou simplória; por metáforas ou no discurso direto. Tudo é relativo, principalmente o tom do desfecho. O único alerta que faço é que, cada vez menos, as pessoas se sentem à vontade para encarar a realidade. Isso sim é a condição essencial para qualquer um que queira se atrever a interagir com o mundo. As recorrentes tentativas de fuga são também entorpecentes da alma que, com o tempo, minam todo o nosso potencial de ver, sentir, se emocionar e se fazer mais vivo.

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