"Renda-se, como eu me rendi.
Mergulhe no que você não conhece como eu mergulhei.
Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento."

(Clarice Lispector)

O Beijo

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Gustav Klimt (1907)
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quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Tema de destaque 11 - Ser Alguém

Recentemente, assisti ao filme Território Restrito, que apresenta diferentes realidades de pessoas que têm a idéia fixa de desfrutar de uma vida melhor nos EUA, mesmo que se submetendo a situações insanas para conseguir o bendito Green Card. Deixam tudo para trás e fazem todos os sacrifícios possíveis e impossíveis, movidos por um pensamento irredutível de lutar por um sonho, pelo direito a uma vida melhor. Conheço uma família que vivenciou essa trajetória por motivos similares. Tinham vontade de fugir da violência urbana, da sensação constante de sonhos frustrados, da decepção com os governantes do país...
Imediatamente, veio à tona em mim a necessidade de me questionar a respeito disso, desarmada e desprovida de meus próprios preconceitos. Será que é isso mesmo? Essas pessoas só podem ser “alguém” e terem direito a um futuro digno com esse título verde na mão e especificamente nesse espaço físico, milimetricamente disputado? Por que as leis que regem a vida seriam tão injustas ou sem noção a ponto de povoarem o mundo com bilhões de seres humanos, os quais estão constantemente à procura da felicidade, sendo que o objeto almejado apenas poderia ser contemplado por uma minoria privilegiada que estivesse ocupando um lugar físico específico? Por que temos a tendência de atribuir a fatores externos a autonomia sobre o nosso estado íntimo de auto-realização e de felicidade?
O primeiro lampejo de resposta ao meu questionamento próprio faz referência a dois aspectos, que se desdobraram em outros dois questionamentos: o que significa ser alguém na vida e quais são os requisitos para ser feliz. Sei que essas perguntas nos remetem a sentidos altamente subjetivos, relativos e pessoais. Mas talvez, a minha forma de compreender essas questões apresente similaridades e até mesmo aspectos que permeiam as aspirações de qualquer pessoa. Então vamos lá, vamos ver o bicho que sai da minha cachola... Interligar os pontos, fazer analogias e associações.
Pensando no princípio de tudo, é possível afirmar que já somos alguém antes mesmo da concretização do nascimento. O ato de concepção em si, já garante ao ser humano, direitos assegurados em lei, mesmo para aqueles pequeninos embriões indesejáveis, não sonhados, supostamente acidentais. Todos têm o direito à vida, é o que se prega. Seguindo essa lógica, acrescento que a lista dos tais direitos, já somados a deveres, após tornar-se alguém no mundo exterior, fora do ventre, apenas cresce.
Em princípio, essa forma legalista de visualizar todos como iguais retrata o melhor dos mundos, inclusive para os ocupantes do terceiro nível, os supostos países em desenvolvimento. Transmite a todos a sensação fugaz de que existe um este superior que disciplina a convivência entre os iguais. Entretanto, a chamada vida real tem suas próprias leis e códigos de ética, os quais apresentam lógicas contraditórias aos padrões ideais. Assim, a universalização da “igualdade” fica atrelada a sonhos e condições individuais. Contudo, a vontade é de todos, ou pelo menos da grande maioria.
O tempo passa e, com ele, cada pessoa escreve sua história que resulta tanto de escolhas próprias, quanto de imposições circunstancias, às vezes oriundas das escolhas de outros, que naturalmente já foram afetados por outros, que interagem com outros e mais outros... Forma-se a teia da vida. Um emaranhado de redes que interliga seres de diferentes identidades, posições sociais, valores, princípios, bem como de condições físicas, psicológicas e materiais que diferem umas das outras desproporcionalmente.
Os resultados dessas interações, somados aos embates diários inerentes ao ser social, que vive em comunidade, provoca impactos e sentimentos de efeitos desmedidos e incalculáveis. Soma-se a isso tudo, o lado de dentro; configurado pela mente e pelas emoções. O cerne da pura subjetividade. A origem de todas as causas e efeitos. A segregação entre consciente e inconsciente. A partir daí, o significado de ser alguém ganha a amplitude que extrapola o legalismo e as condições ideais de sobrevivência. Reflete a aspiração de cada indivíduo a partir das acepções de seu mundo e da sua capacidade de abstração, autoconhecimento e de conscientização. Tem também o fator “sorte”. Não sei se essa é a palavra mais adequada para representar este significado. Refiro-me às chances que a vida nos presenteia. Estar no lugar certo, na hora certa, com a pessoa certa. Mesmo que as oportunidades precisem ser bem aproveitadas para gerar frutos, na maioria das vezes, esse empurrãozinho faz toda a diferença.
Portanto, considerando a parte prática da coisa, sentir-se alguém na vida está intrinsecamente ligado ao fator felicidade. Todo mundo carece de se descobrir como pessoa, de produzir algo, de deixar uma marca no mundo. Precisamos saber o que fazer com nossos talentos, aprender a multiplicá-los, a compartilhá-los e crescermos juntos. Enterrá-los no chão e aguardar os brotos não é a saída, independente de onde estivermos e de quem quer que sejamos.
Concordo com aquela corrente de pensadores que defende a idéia de que a natureza do homem é boa, que se corrompe no mundo, devido às diversas frustrações e adversidades as quais são submetidos. E quanto mais caótica e confusa for a atmosfera que circunda a sociedade, mais distantes estaremos da nossa natureza e, consequentemente, de nos descobrirmos como seres em estado de felicidade. Isso mesmo, estado, que quer dizer algo não permanente, transitório, intermitente. Ninguém é plenamente bom, ninguém é totalmente mau e nenhuma pessoa é completamente feliz. Não neste mundo!!!
Acredito que o fato de estar em um local específico do mundo, em busca da minha realização como pessoa, jamais terá sentido nem alcançará a plenitude esperada enquanto eu não conseguir domar meu caos interior, minhas batalhas comigo mesma. Nosso estado interno nos acompanha onde quer que estejamos, seja qual for o nosso destino. A felicidade é uma condição que não está inexoravelmente ligada à maturidade de idade embora o tempo ajude, nem tampouco à abundância de recursos financeiros e patrimoniais. Não vou ser hipócrita a ponto de dizer que dinheiro não vale nada! Mas muitas pessoas são abastadas e mesmo assim tiram suas próprias vidas, sentem-se infelizes, incompletas, não dignas de si mesmas.
No fundo, acredito que, apesar de todas as diferenças de cor, credo e nível intelectual, todos nós temos a necessidade de sermos aceitos e de nos sentirmos acolhidos e amados pelas pessoas com as quais nos relacionamos. Por isso, defendo que o tamanho da nossa felicidade não está condicionado aos objetivos traçados e delineados por nosso estágio de consciência. Está principalmente atrelado ao nível de profundidade com que interagimos com o mundo e com as pessoas. E essa felicidade se perpetua com a mesma capacidade que ampliamos o tesão pela vida e pelas coisas que realizamos a cada dia. As grandes e as pequenas. Essa é a vontade que move o mundo e faz com que o universo conspire a nosso favor. Consigo sentir-me transbordando de emoção ao admirar uma obra de arte que me toca, ao fazer parte de uma bela paisagem, ao acalentar com um forte abraço alguém que amo. Tão simples assim... Quem dera fosse.
Mas além de todas as incertezas, os únicos aspectos que podemos afirmar com segurança em relação à nossa condição de ser humano é que nascemos machos ou fêmeas e que a morte do corpo é inevitável. Diante disso, cabe a cada um de nós usarmos e abusarmos da nossa intuição para aproveitarmos nossos talentos e ampliarmos as nossas chances de barganha com a fortuna da vida. Primeiro, tendo a consciência que os possuímos. Em seguida, aprendendo a identificá-los e, por fim, descobrindo como desenvolvê-los e aprimorá-los. Sem pressa, um passo de cada vez. Sem hora nem data marcada, porque até o último suspiro ainda estaremos em profunda transformação. Com esses ajustes, não fará diferença em que parte do mundo se vive. Porque tudo o que precisarmos para sermos felizes estará dentro de nós e poderá ser acessado a qualquer tempo e em qualquer lugar.

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